A SIC (televisão portuguesa) emitiu uma reportagem, esta terça-feira, em que dava conta da existência de cerca de 200 crianças subnutridas e doentes, sozinhas num barracão nos arredores de Luanda. Com cara de virgem ofendida mas sem conseguir ocultar a sua imagem de marca (meretriz), o Governo do MPLA pediu informações sobre o seu paradeiro “para que sejam salvas”. Texto actualizado em 31.07 com o esclarecimento da SIC.
O Governo angolano (que há 45 anos é da responsabilidade do MPLA) pediu ajuda para localizar as cerca de 200 crianças, subnutridas e doentes, que estarão num barracão nos arredores de Luanda sem qualquer supervisão ou apoio de adultos. Pelos vistos, para além de ser um reino super policiado, super militarizado, o Governo só consegue localizar o umbigo dos seus próprios membros e amigos.
A denúncia foi feita pela associação “Pedacinhos do Céu”, em Olhão (Portugal), e foi noticiada na terça-feira pela SIC, na reportagem “Os meninos de Kassanje”, que divulgou imagens das crianças. Tivesse João Lourenço a estatura moral que se exige a um Presidente da República, mesmo que não nominalmente eleito, e já teria rolado a cabeça de algum ministro.
Mas não. O Governo vai descobrir que a culpa da situação é da zungueira Josefina, da marimbonda Isabel dos Santos, do fantasma Jonas Savimbi ou até dos colonialistas portugueses. E, provavelmente, o responsável político por mais este escândalo que só não envergonha quem não tem vergonha (os dirigentes do MPLA) será promovido.
Em comunicado, o Ministério das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social angolano (que, como se vê, deve ter o pelouro institucional de situações de escravatura como esta) afirma que “tomou conhecimento de uma matéria veiculada por uma estação de televisão Portuguesa no dia de ontem” e pede à SIC que partilhe as informações que tem com as autoridades angolanas.
Ou seja, mais uma vez devem ser os jornalistas a fazer o que deveria caber (se Angola fosse o que não é – um Estado de Direito) aos organismos do Estado. É pena que o ridículo não cure a malária, a Covida-19, a tuberculose e não faça o milho crescer…
“O Governo apela à estação de televisão que afirma levar a cabo uma investigação sobre o assunto que partilhe com as Autoridades Angolanas as informações de que tenha conhecimento e que possam facilitar a localização das referidas crianças, para que sejam salvas”, escreve com uma criminosa desfaçatez o Governo, pedindo também que quaisquer “pessoas de boa-fé e que detenham eventualmente alguma informação que facilite o processo de localização do referido centro” partilhem também essas pistas.
Isto enquanto os membros do Governo procuram soluções durante uma refeição cuja ementa de trabalho deverá ser a que sempre é: Trufas pretas, caranguejos gigantes, cordeiro assado com cogumelos, bolbos de lírio de Inverno, supremos de galinha com espuma de raiz de beterraba e uma selecção de queijos acompanhados de mel e amêndoas caramelizadas, acompanhadas por cinco vinhos diferentes, entre os quais um Château-Grillet 2005…
“Tais crianças, segundo a peça, estariam concentradas num centro localizado algures no distrito urbano da Estalagem, município de Viana, na província de Luanda. Para qualquer cidadão angolano que conhece o valor da solidariedade, as imagens apresentadas são chocantes e exigem uma pronta intervenção”, comunica (boceja) também o Governo.
Em Setembro de 2018 o então ministro da Agricultura e Florestas de Angola, Marcos Alexandre Nhunga, disse que o país tem alguma “população considerável que não passa fome como tal”, mas que “se encontra numa situação difícil”.
“Não passa fome como tal”? Ou passa fome ou não passa. Essa coisa de “fome como tal” não existe. Queria o ministro dizer que passa fome às segundas, quartas e sextas e come qualquer coisa às terças, quintas e sábados? E que “como tal” aos domingos faz jejum?
Marcos Nhunga falava aos jornalistas depois de questionado pela agência Lusa sobre o relatório de segurança alimentar e nutrição elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), o qual indicava que, em Angola, 23,9% da população passava fome. Passa forme. Não “fome como tal”.
“É uma realidade, mas não temos essa realidade. A FAO divulga os seus dados e não queremos fazer comentários. Mas a FAO, quando divulga, tem dados com base num levantamento a nível mundial”, afirmou o então governante. E o que é que um levantamento a nível afecta, “como tal”, os dados relativos a cada país?
No relatório de 2018, a FAO referiu que cerca de 821 milhões de pessoas no mundo passam fome, o que se traduz num aumento quando comparado com os dados de há dez anos.
Em Angola, segundo a FAO, “23,9% da população passa fome”, o que equivale a que “6,9 milhões de angolanos não tenham acesso mínimo a alimentos”.
Marcos Nhunga sustentou que a constatação é diferente da que pode parecer… “como tal”.
“[Angola] ainda tem alguma população considerável, que não digo que passem fome como tal, mas que está numa situação difícil. Exactamente por isso é que o governo quer melhorar e está a fazer intervenções no meio rural no quadro da actividade produtiva, para que possa resolver os problemas ligados à fome e à pobreza”, disse o então ministro.
Por sua vez, João Lourenço disse na emblemática entrevista à RTP que não há fome em Angola, retratando que o que há, apenas aqui ou ali, é uma ligeiríssima má-nutrição.
A comprovar o seu alto nível para estar abaixo do nível mínimo exigido a um estadista, João Lourenço reafirmou, através das suas contas no Facebook, Instagram e Twitter, que “a saúde constitui prioridade do Executivo” e “não descansará enquanto continuar a haver mortes por doenças evitáveis” no país.
A posição do Chefe de Estado surgiu na sequência das visitas realizadas ao Centro de Depósito de Medicamentos e aos hospitais Geral de Luanda e Josina Machel, onde se inteirou das dificuldades e dos projectos em curso.
Segundo o Presidente, o contacto com essas instituições permitiu reforçar a ideia de que a luta por um sistema de Saúde mais humanizado é um desafio de todos, ou seja, da família, escola, universidade, das igrejas e até do próprio hospital. Desafio desde 1975?
Por outro lado, o Titular do Poder Executivo (que acompanha sempre o Presidente da República…) manifestou-se animado depois de constatar que os profissionais desses locais de cura estão engajados em fazer dos hospitais um instrumento fundamental para o desenvolvimento do país.
Na altura, a Angop não registou as declarações do Presidente do MPLA, que nunca falta às deslocações onde está o Presidente da República, mas é fácil presumir que terá dito a mesma coisa…
Em 2018, os próprios dados governamentais davam conta que Angola tinha uma taxa de desnutrição crónica na ordem dos 38 por cento, com metade das províncias do país em situação de “extrema gravidade de desnutrição”, onde se destacava o Bié, com 51%.
As províncias do Bié com 51%, Cuanza Sul com 49%, Cuanza Norte com 45% e o Huambo com 44% foram apontadas, na altura, pela chefe do Programa Nacional de Nutrição, Maria Futi Tati, como as que apresentavam maiores indicadores de desnutrição.
“São cerca de nove províncias que estão em situação de extrema gravidade de desnutrição, sete províncias em situação de prevalência elevada e duas províncias em situação de prevalência média”, apontou Maria Futi Tati, em Junho de 2018.
A criação de pelo menos (pelo menos, note-se, anote-se e relembre-se) meio milhão de empregos, reduzir um quinto à taxa de desemprego e instituir o rendimento mínimo social para as famílias em pobreza extrema (temos apenas e graças à divina actuação do regime do MPLA 20 milhões de pobres) foram propostas solenemente apresentadas e subscritas por João Lourenço.
Mas o MPLA está no poder desde 1975 e nos últimos 18 anos o país está em paz total, dirão os mais atentos e, por isso, cépticos. Mas o que é que isso interessa? Desta vez é que vai ser. A montanha nem um rato (made in China) vai parir. Mas o que realmente conta é continuar a ser dono do país. E disso o MPLA não abdica.
Os discursos de João Lourenço são (já foram mais, é verdade) marcados por uma insistente propaganda de combate à corrupção (onde Angola está no top mundial dos mais corruptos), que diz colocar em causa “a reputação” de Angola no plano internacional.
“Se tivermos a coragem, a determinação, de combatermos a impunidade, com certeza que conseguiremos combater a batalha da luta contra a corrupção”, apontou João Lourenço que, aliás, ainda não explicou (nem vai explicar) como é que era antes de ser eleito o 21º homem mais rico de Angola.
Reduzir a taxa de incidência da pobreza de 36% (segundo as deficientes contas do regime) para 25% da população, do índice de concentração da riqueza de 42,7 para 38, e “criar e implementar o Rendimento Social Mínimo para famílias em situação extrema de pobreza” são – repete João Lourenço – objectivos. Como é que isso se consegue? JLo não explica. Nem precisa de explicar. Aos escravos basta saber que “o MPLA é Angola e que Angola é do MPLA”.
“Erradicar a fome em Angola”, aumentar em cinco anos a esperança de vida à nascença, elevando-a para 65 anos, reduzir a taxa de mortalidade infantil (uma das maiores do mundo segundo organizações internacionais que não leram o manifesto do regime) de 44 para 35 por cada mil nados-vivos e de crianças menores de cinco anos de 68 para 50 por cada mil nados vivos, são outras metas do MPLA de João Lourenço.
Como vai fazer isso? Isso não interessa saber. Aliás, as promessas não carecem de justificação nem de explicações sobre a forma de serem cumpridas.
Esclarecimento da SIC
Depois de transmitida a Investigação SIC, a 28 de Julho, algumas das crianças foram localizadas e encaminhadas para o Hospital Pediátrico de Luanda. Afinal, as crianças que se julgavam viver todas num barracão, na Baixa de Kassange, estão dispersas por diferentes locais na periferia de Luanda.
Os menores resgatados foram encontrados na companhia de familiares, por duas activistas que conseguiram chegar à localização.
Laura Macedo e uma amiga, ambas activistas em Luanda, chegaram ao autor dos vídeos através da SIC. Convenceram o elo de ligação da associação algarvia “Pedacinho do Céu” a Luanda a revelar a localização de algumas das crianças.
A associação “Pedacinho do Céu”, que sempre se recusou a dar a localização das crianças à SIC e que nunca alertou as autoridades angolanas para a situação dos menores, pretendia donativos para abrir um orfanato em Angola.
Sabe-se agora através das activistas que localizaram os três meninos e a rapariga de 16 anos, que as crianças doentes e subnutridas existem, mas que o cenário do barracão e o número de menores foram encenados.
As autoridades angolanas desconhecem o caso, mas a embaixada admite que o bairro acolheu, até 2018, refugiados da República Democrática do Congo.
O autor dos vídeos, que na quarta-feira aceitou levar ajuda até quatro das crianças, tinha prometido encaminhar as voluntárias para os restantes meninos, mas entretanto, na sequência da polémica que o caso está a gerar em Angola, tem estado incontactável.
As autoridades angolanas dizem continuar no terreno para encontrar mais crianças e deslindar um tema que se transformou num caso de polícia.